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Chico Buarque, luto dos familiares e incêndio nos EUA: o que diz a sentença de 43 páginas da Kiss

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Foto: Pedro Piegas (Diário)

O veredito que colocou fim ao maior júri da história do Rio Grande do Sul começou a ser lido às 17h40min de sexta-feira pelo juiz Orlando Faccini Neto. A sentença do júri da Kiss, que condenou os quatro réus, foi divulgada na íntegra pelo Tribunal de Justiça nesta segunda-feira. O texto de 43 páginas traz referência a Chico Buarque, ao livro "Todo dia a mesma noite", escrito pela jornalista Daniela Arbex, ao incêndio na The Station Nightclub, boate dos Estados Unidos, aponta depoimentos dos próprios sobreviventes em plenário e demonstra empatia com a dor dos familiares. 

LEIA A SENTENÇA NA ÍNTEGRA

O magistrado começa o texto com reflexões a cerca do conceito de dolo eventual e culpabilidade dos réus em relação ao incêndio. Orlando cita que "a culpabilidade dos réus é elevada, mesmo em se tratando de dolo eventual", e isso reflete nas penas. Além disso, também considera que a condenação traz uma resposta às vítimas e aos familiares de que a tragédia não foi esquecida: "nos casos de perda de entes, como no caso presente, a pena criminal há de comunicar aos familiares, pais e mães enlutados, o grau de respeito que lhes devota o Estado". Ao atribuir a responsabilidade aos réus, o magistrado enfatiza que a tragédia não foi uma obra do acaso, causada por um raio, um terremoto, um tufão ou furacão: tratou-se de obra humana.

Conforme o próprio juiz afirmou ao ler a sentença, esse texto já estava "rascunhado" antes do fim do júri, assim como outras possibilidades de vereditos. As penas aplicadas foram: 22 anos e seis meses para o sócio da boate Elissandro Spohr, 19 anos e seis meses para o sócio Mauro Hoffmann, 18 anos para o vocalista da banda Marcelo de Jesus dos Santos e 18 anos para o roadie Luciano Bonilha Leão.

FAMILIARES
Ao falar do luto dos familiares de vítimas, o magistrado lembrou que muitos foram ao júri para acompanhar o desfecho do caso, ainda chorando a mortes de seus filhos, mesmo quase nove anos depois. Neste ponto, Orlando lembrou que os pais se uniram em um grupo que compartilha das mesmas dores. "Isto, entretanto, nunca pode ser naturalizado e, mais que isso, parece potencializado quando a experiência da morte deixa de ser algo individual, para constituir-se numa dimensão coletiva. Foram mais de duzentos e quarenta mortos, e a expressividade do número de vítimas não divide ou arrefece as dores ou tragédias pessoais; multiplica-as". 

Orlando afirma que os réus passarão apenas de 16% a 25% do total das penas presos em regime fechado. E, ainda assim, "todos os réus, seguramente, terão ainda tempo para cultivar as suas famílias, desenvolver as suas amizades, viajar, conhecer pessoas, participar de festas, eventos, amores e desamores, nessa trajetória cheia de mistérios e maravilhas que é a vida". Mais uma vez, o juiz lembra das vítimas, dizendo que nada disso caberá a elas. "Sequer é possível um cálculo instrumental sobre a idade de cada qual, e a expectativa de vida que teriam, para chegarmos ao quanto de tempo lhes foi subtraído. Basta dizer que é muito". 

"TODO DIA A MESMA NOITE"
O livro da jornalista Daniela Arbex é citado pelo magistrado para lembrar as consequências da tragédia na vida de muitos familiares: casais se separaram depois de perderem seus filhos, pais morreram (ou desistiram da vida) e famílias encontraram dificuldades econômicas, uma vez que eram sustentadas pelos jovens que morreram. Também, em referência ao livro, estima que mais de 9 mil anos potenciais de vida foram perdidos na tragédia, considerando-se a expectativa de vida do brasileiro em torno de 75 anos. 

Anotações, processo e remédios: o que ficou no tribunal após o júri da Kiss

A sentença também expõe o sofrimento e a dor das vítimas, sentimentos que foram retratados no livro de Arbex. Orlando pede que as pessoas façam um exercício altruísta de colocar-se no ambiente dos fatos para imaginar o desespero na luta por sobrevivência. O veredito cita um trecho do livro que relata  dificuldades enfrentadas pelos próprios socorristas, "relatando o caso de um médico que quando examinou a boca de uma das vítimas, uma garota, levou um susto: uma fumaça preta saía de sua garganta. Os olhos estavam completamente brancos, queimados, jovens morriam na frente de todos, uma cena insuportável até mesmo para quem fora treinado para enfrentar situações limite".

VÍTIMAS
No texto, o magistrado leva em conta que o tempo de morte estimado dentro da Kiss foi de três a cinco minutos depois de o incêndio ter começado. Além disso, relata que, entre as vítimas, a maioria tinha cerca de 20 anos, jovens "cheios de expectativas, de anseios e sonhos, tolhidos e interrompidos à conta dos fatos". 

Dois depoimentos de sobreviventes em plenário são lembrados por Orlando: o de Kelen Ferreira, que teve 18% do corpo queimado, tem braços cicatrizados e uma das pernas amputadas; e Delvani Rosso, que, enquanto desmaiava dentro da boate, mentalmente despedia-se da família e amigos, pedindo perdão por qualquer coisa que tivesse feito.

O magistrado argumenta que todos os jovens procuravam a boate para diversão e, por isso, tinham relação de confiança com a casa noturna, já que imaginavam que o local seguia todas as regras de funcionamento. Destaca que muitas das vítimas retornaram à boate durante o incêndio "com o objetivo nada menos que heroico de buscar salvar da morte seus semelhantes".

CHICO BUARQUE
O luto de familiares e da própria comunidade de Santa Maria é descrito em cinco trechos. Para refletir sobre o "luto perene", Orlando se questiona: "estar-se-ia a refugir dos padrões de uma decisão judicial se a poesia fosse chamada?", e, na sequência, traz a música de Chico Buarque, citada em plenário durante os debates, Pedaço de Mim: "Oh, pedaço de mim. Oh, metade arrancada de mim. Leva o vulto teu. Que a saudade é o revés de um parto. A saudade é arrumar o quarto. Do filho que já morreu". Mais uma vez, lembra que esse luto se expressa no olhar triste de pais e mães que, em busca de respostas, compareceram massivamente em plenário. 

THE STATION
Outro incêndio em uma boate, a The Station Nightclub, nos Estados Unidos, em 2003, serviu de argumentação para o juiz ao citar o comportamento dos réus. A tragédia americana teve 100 mortos e 230 feridos. A causa foi a mesma: uso de um artefato pirotécnico e queima de espuma tóxica. Na época, o gerente da banda escreveu cartas manuscritas às famílias de cada uma das 100 vítimas. A sentença considera que os réus da Kiss nada fizeram para se aproximar dos pais e sobreviventes. 

OS RÉUS
Ao final, o juiz cita o habeas corpus preventivo que acabou evitando a prisão imediata dos réus e execução provisória das penas.

O veredito traz uma análise detalhada sobre o que considera a participação de cada um dos quatro réus:

ELISSANDRO e MAURO 

  • determinaram a instalação, em paredes e no teto da boate, de espuma altamente inflamável
  • empreenderam a contratação de show musical no qual era conhecida a utilização de artefatos similares a fogos de artifício, sem prestar a devida informação sobre os riscos associados à conjugação destes dois fatores
  • aceitaram manter a casa noturna com lotação demasiada, sem que tivessem atuado no sentido de viabilizar adequadas condições de evacuação, em casos de necessidade
  • tudo no processo corrobora a ideia de que mantinham funcionários sem os treinamentos obrigatórios
  • no início do incêndio, ainda ordenaram aos seguranças para que impedissem a saída de pessoas do recinto sem o pagamento das despesas de consumo 
  • prioridade em beneficiar os lucros em desfavor da segurança de seus clientes, desde a aquisição de materiais até a imposição de dificuldades para a saída das vítimas

MARCELO e LUCIANO 

  • mesmo conhecendo o local do fato, onde já haviam atuado, acionaram os artefatos pirotécnicos que sabiam, ou no mínimo deveriam saber, serem destinados a uso em ambientes externos, sendo que um destes foi direcionado para o teto da boate, de modo leviano e insensível, o que deflagrou a queima do revestimento inflamável.
  • teriam saído do local sem alertar o público acerca do fogo e da necessidade de evacuação, dando à vida dos frequentadores nenhuma importância e egoisticamente buscando preservar a sua
  •  teriam adquirido e usado artefato pirotécnico de valor significativamente inferior àquele que se afiguraria mais seguro para utilização num local como a boate.

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